O meu pai uma vez contou-me que a natureza cantava sobre a madrugada e eu não fiz caso. Até àquele alvorecer.

Uma semana depois de regressar de Lisboa para estar com os meus pais em isolamento, o meu pai contou-me algo que não fiz muito caso na altura. É daquelas estórias que ouvimos, até acreditamos, mas não se lhe dá o merecido crédito porque provavelmente a pessoa está a exagerar.

Foi o que aconteceu comigo. O meu pai trabalhou durante o turno da noite durante mais de 40 anos – começou no labor aos 12 – e agora que está reformado, ainda não fez as pazes com o sono noturno (e penso que nunca as fará). Por isso, estar desperto às tantas da madrugada é tão natural como andar de bicicleta.

Um dia, à hora de almoço, comentou comigo: “Hoje de manhã dei-me conta de um espetáculo que irias adorar”, e perguntei qual, e ele “deviam ser aí umas cinco e meia da manhã e fui à janela da casa de banho. Já não sei quem me disse, mas antes de o sol nascer os animais fazem um espetáculo sonoro brilhante! Ouves os galos, as andorinhas… nem te sei explicar!”.

Assenti e respondi: “Acredito, deve ser bonito. Um dia destes tenho que acordar para ouvir”. Estava a mentir a mim própria. Lá no fundo, no fundinho, sabia que isso não ia acontecer. Para mal dos meus pecados, o sono e a cama são dois dos meus melhores amigos.

Alguns dias se passaram e o meu namorado, que trabalha em Lisboa, teve de regressar à capital. Como medida de contenção, a CP – Comboios de Portugal suprimiu o comboio que arrancava depois da hora de almoço. A única solução era ir no primeiro da manhã, antes das oito horas.

Nesse dia, levantei-me num ápice, não fosse o sono cerrar-me novamente as pálpebras e vesti-me. Tomei o pequeno-almoço, enfiei os documentos e o telemóvel dentro dos bolsos do casaco e saí. Ainda era de noite, apesar de saber que dentro de minutos os primeiros raios iam despertar mais um dia. Mal desci as escadas, parei.

Parecia não acreditar no que estava a ouvir. Fui inundada por um sentimento tão confortável, tão apaziguador. Os meus pés ficaram colados ao chão, não se conseguiam mover. À minha volta, uma orquestra de sons tocava: os galos a cacarejar, as andorinhas a chilrear, os cães a ladrar, a água da ribeira a deslizar. Parecia um som tirado dos filmes que vemos no cinema. Eram 06h42.

Não tinha tempo de voltar atrás e ir buscar o gravador, por isso abri o bolso do casaco e tirei o telemóvel. Gravei menos de um minuto. E a sinfonia da madrugada foi esta:

Ana Sofia Paiva · 06h42, a hora dourada

Fui buscar o meu namorado, mostrei-lhe a gravação e ele disse que realmente parecia ter sido tirado de um filme. Fiquei extasiada com aquele início de dia. Afinal, o meu pai tinha mais do que razão. É algo que não se consegue explicar, só mesmo ouvindo.

O meu namorado apanhou o comboio e eu voltei para casa. À hora de almoço, contei ao meu pai o sucedido e mostrei-lhe a gravação. A resposta dele foi apenas esta: “Vês? Eu não te disse? Foi preciso ires pôr o teu namorado à estação para ouvires isto. O que tu perdes por estares na cama”.

Bem, contra factos não há argumentos.

7 respostas

  1. Que bonito minha querida Ana. Só alguém com a doçura do teu pai para te falar de uma coisa tão bonita como essa ? um beijinho para vocês.

    1. Que palavras tão amáveis. Muito obrigada, Helena! Imagina aqueles olhos azuis a contar-me a história… Ainda bem que tive que acordar cedo. Um grande beijinho!

      1. Adoro! A sinfonia da madrugada é extremamente pura, bonita e tranquilizante.
        Mas tu sabes que é difícil resistir..?

        Beijinho Grande lá para casa.. ?

  2. É verdade, eu como noctívago incurável (depois de anos a trabalhar no mesmo turno que o teu pai, embora noutra empresa) posso confirmar que o nascer do sol é mágico. Eu quando morei em castelo branco às vezes ia para o castelo de madrugada só para ficar lá sentado em cima das muralhas e ver o nascer do sol… Os animais acordam antes do sol nascer e dão um concerto como que a acordarem-se uns aos outros antes de iniciarem as suas rotinas diárias…
    O mundo é um sítio fantástico, os humanos é que o estragam!

  3. Lindo, Ana Sofia Paiva. Conheço esses sons, porque muitas vezes acordei de madrugada, para estudar ou para sair de Unhais para a Covilhã onde dava aulas, quando ia dormir com os meus Pais, eles velhinhos. Esses sons estão no meu coração. Não os estranhei mas fiquei comovida! Obrigada um abraço

  4. Obrigada por partilhares os sons da Serra da Estrela, num amanhecer cheio de vida em harmonia. Bem hajas! Beijinho❤️