A Antártida parece tão distante como fascinante. Associamo-la aos pinguins, aos icebergs ou então às auroras boreais, ondulações cósmicas num espetáculo de cor. Tudo isto parece produto de um documentário sobre uma expedição ao deserto polar. Mas não é. Prova disso são Ricardo Almeida e José Queirós, dois portugueses que mostraram que os sonhos se podem realizar numa morada gelada.

Era um dia típico de verão.
O sol deixava-se ver por entre algumas nuvens que surgiam e rapidamente desapareciam. A temperatura rondava uns graus negativos, talvez quatro, e o gelo refletia a luz que o sol transpirava para o solo. Os homens andavam de manga curta. Estava calor naquele dia. Afinal, era verão na Antártida. E inverno em Portugal.

Ricardo Almeida foi o único português a estar na base britânica batizada de British Antartic Survey (BAS) VI, na Antártida Oriental, em 2016. Alentejano sem sotaque, de Campinho, concelho de Reguengos de Monsaraz, formou-se em Engenheira Eletrotécnica na Universidade de Évora. Com 35 anos, aventurou-se a atravessar meio mundo para ser responsável por dois radares de média frequência que ajudam a fazer previsões meteorológicas espaciais. Apesar destes serem os principais, o engenheiro tinha mais encargos.

Na Antártida Oriental, o fuso horário anda de mãos dadas com o dos Açores. São 14 milhões de quilómetros quadrados quase inabitáveis no reino do gelo, a não ser pelos pinguins e pelas bases de investigação. O frio a menos qualquer coisa – que pode ir até aos menos 65 graus –, conjuga com casacos quentes, máscaras e luvas. As botas confeccionadas para o deserto polar lembram que não há quase atrito.

“A neve é muito estranha na Antártida. É como a areia da praia, se cairmos de cabeça ficamos com pedaços de gelo, tal como na praia ficamos com areia”, conta o Ricardo Almeida que, até então, nunca tinha visto neve. E quando teve essa oportunidade, conviveu com ela durante 15 meses.


Halley, a base da British Antartic Survey VI, é composta por quatro módulos

As condições atmosféricas são desfavoráveis porque o tempo é imprevisível, o que torna a Antártida o único continente sem população permanente e com ar absolutamente puro. A viagem de Ricardo começou muito antes do dia 18 de Dezembro de 2015. Candidatou-me ao BAS e foi aceite. Esteve em preparação em Cambridge, no Reino Unido, para a grande viagem: simulou situações de perigo, como a fraca visibilidade com um balde na cabeça, sistemas de roldanas para tirar alguém dentro de um buraco, entre outras.

Durante três meses, treinou em conjunto com os seus colegas de missão: polacos, suíços, britânicos. “Logo nas primeiras semanas de treino, começamos a dar-nos todos bem, sabíamos que íamos ficar isolados, há aquela presença de espírito que vamos ficar juntos, o melhor é começarmos a dar-nos bem já”, revela o engenheiro.

A grande viagem começou. No Queen of the skies, um boeing 747 militar, viajaram até à cidade do Cabo, na África do Sul, uma viagem de 12 horas “que não foi fácil”, confessa Ricardo. Lá, trocaram o ar pelo mar. Nas ondulações do oceano glacial antártico, ainda tocando nas águas do oceano Atlântico e do Índico, duas semanas separavam Ricardo da grande aventura na Antártida – que afinal, já tinha começado.

Logo na primeira semana viu “icebergs do tamanho de prédios”. Alguns dias depois, começou “a ver bicharada”: os pinguins e as focas. Uma viagem que tanto teve de espantosa, como sofrida: “Na segunda semana tive de tomar comprimidos para o enjoo” diz, entre risos.

Chegou ao deserto polar. Ajudou a descarregar a carga do navio e só ao décimo dia é que a equipa partiu para Halley. O “Tratado de Antártida”, em 1961, estipulou a permanência na Antártida exclusivamente para pesquisa científica e colaboração entre os países no continente. A base de Halley, pertencente aos britânicos, é constituída por quatro módulos. Lá dentro, existe ginásio, cinema, uma biblioteca, bar e todas outras divisões que diminuem o sentimento de estar longe de casa.

O projeto “Halley 360º” foi criado por um colega de Ricardo e consiste em imagens panorâmicas 360º dentro dos quatro módulos. Imagens recolhidas durante este período de tempo, que mostram como os investigadores e cientistas vivem. Uma visita guiada sem sair do conforto do lar.

O dia e a noite pouco se encontram

Em dezembro está calor. Apesar das temperaturas negativas, não muito baixas, Ricardo está pouco agasalho a trabalhar com os colegas. Confessa que o primeiro verão foi dos “melhores, apesar do vendaval”. Festejou o Natal e colocou o pé em 2016 com o adereço do sol. Na Antártida, o dia e noite pouco se encontram. Em meados de abril, antes do sol dar lugar à lua, existe “o sol da meia-noite”. É de dia durante 24 horas. Depois, a noite é rainha durante 107 dias. “É estranho, porque é sempre de noite. Eu só ‘acordava’ depois de um café”, conta o engenheiro. No dia 11 de Agosto, apesar de algumas nuvens intimidarem o astro a espreitar, “nós sabíamos que o sol estava ali”, recorda Ricardo.

O inverno é muito rigoroso no deserto polar, apesar de a temperatura não ter atingido os menos 50 graus. O português explica que é um dos efeitos das alterações climáticas que se fazem sentir: “Para falarmos de alterações climáticas é necessário estudar o fenómeno durante algum tempo. Eu por sorte ou por azar apanhei um dos melhores verões que há memória no primeiro verão, e um dos piores verões de que há memória no segundo verão”. E o facto de a temperatura não ter atingido, no inverno, os menos 50 graus, já é indicador que alguma coisa está a mudar, relata o engenheiro.


Uma das muitas fendas de gelo que Ricardo encontrou na viagem

Outro indicador destas transformações foi uma placa de gelo que tinha uma fenda e que se movia a 1.7 quilómetros por ano. “Ainda leva uns bons anos até conseguir partir aquele bocado todo, mas o problema está que ela ia cortar caminho para a zona estável da placa”, explica Ricardo.

Em 2013, a BAS colocou em marcha “um dos planos mais ambiciosos” na Antártida: mudar os mais de oito milhões de toneladas dos quatro módulos para nordeste “para sairmos do caminho da fenda”. Mas em 2016, a placa começou a partir-se por cima: estavam cercados, diz Ricardo. Então, para conhecerem a fenda, viajaram de avião para entender os seus contornos. Apelidaram-na de fenda “Chasm 1” e era monitorizada todos os meses pela equipa.

Uma vista cósmica no igloo

A curiosidade era muita. O atrevimento ainda mais. Se eles conseguem fazer no polo oposto, porque não tentar? E assim se construiu um igloo. Típico dos esquimós, foi uma aventura que Ricardo recorda no seu blog. Depois de construído e com direito a algumas bebidas para aquecer o espírito, a equipa pernoitou à luz das auroras boreais da Antártida. Luzes predominantemente verdes assumiam outras cores do arco-íris. Um espetáculo a que poucos assistem.


Igloo construído pela equipa de Halley, que assistiu às auroras boreais dentro do abrigo de gelo

Muitas experiências marcaram a passagem do português pelo continente frio. Uma delas foi ter travado conhecimento com o astronauta da estação espacial, Tim Peakes. “Falamos sobre coisas do quotidiano, afinal ele estava no espaço e eu num dos sítios mais frios do planeta” revela o engenheiro. Outra experiência foi ter visto o chamado “pó de diamante”: “Quando fica nevoeiro e continua a estar tanto frio, as partículas de água congelam e formam pequenos cristais de gelo que refletem o sol” esclarece.

Volvidos 15 meses, no dia 24 de Fevereiro de 2017, Ricardo volta a casa. Ao seu Portugal.

Uma aventura pesqueira histórica

Antartic Discovery. O nome do barco de pesca era sugestivo: descoberta da Antártica. Com 22 anos e na época no Mestrado em Ecologia no Centro de Estudos do Mar e do Ambiente (MARE) da Universidade de Coimbra, José Queirós aventurou-se pelos mares da Antártida, em 2016.

O que seria “apenas” uma viagem para estudar a dieta dos peixes e dos cefalópodes (como lulas e polvos), acabou por marcar a sua carreira. Durante dois meses e meio, José navegou no barco pesqueiro e, acaso feliz, a equipa descobriu o maior polvo da Antártida, no mar Dumont D’Urville.

“[Quando] acordei, eles disseram que tinham o polvo. Na altura eu não sabia que espécie era, eu trabalhava com lulas. Aos polvos consigo mais ou menos saber qual a espécie, pelas mandibulas – os bicos. Assim apanhá-lo inteiro não estava à espera. Na altura até brincamos que era uma espécie nova”. Mas não era. José descobriu que se tratava da espécie Megaleledone setebos pela dieta do próprio animal. O espécime mede um metro e 15 centímetros e pesa 18.5 quilos, o maior até agora descoberto.


O maior polvo descoberto até agora está no Museu Te Papa, em Wellington, Nova Zelândia

Enquanto preparava o plano para a sua tese de mestrado, José Xavier, orientador de José, e vários outros professores foram convidados por japoneses para embarcar. O propósito era filmar um documentário sobre as investigações. Os professores e companheiros profissionais de José Xavier já tinham outras expedições marcadas e foi então que a oportunidade surgiu: “Vai o meu aluno. Eu acredito, sei que ele tem capacidade para ir, portanto vai ele” conta José Queirós sobre a decisão do seu orientador. “Foi estranho” revela, “principalmente quando disse à minha mãe que ia para a Antártida quatro meses e não ia passar cá o Natal e o ano novo”, conta.

Partiu em Novembro de 2016. Para trás, ficaram 40 horas de viagem em que passou pelo Dubai, Austrália e Nova Zelândia. Com ele foram 27 homens de cinco países diferentes: o único português era José. Falava inglês com todos, exceto com os indonésios: “Os indonésios não falavam inglês. O ponto de equilíbrio que encontrei com os outros foi saber que já tinham pescado em Portugal, em conversas já se tinha percebido isso, ou seja, eles falavam espanhol e eu chegava a arranhar um pouquinho”, conta o português.

O estudo de José tinha três objetivos: estudar a dieta do bacalhau, dos cefalópodes e gravar um documentário para o Japão. Ao largo da Antártida, tudo cheirava a peixe – a roupa, as mãos, o espírito. A amizade foi-se conquistando através da humildade: “Nos três primeiros dias fui, literalmente, um pescador a mais. Ajudava a cortar peixe e lavava-o, para conquistar a confiança, porque nós éramos um corpo estranho à tripulação” diz José, e acrescenta “nós já tínhamos ali dois observadores a fazer o seu trabalho e acabavam por tirar um bocado mais de tempo [aos pescadores]. Se está lá mais um cientista a tirar esse tempo… não podia ser. A maneira como ganhei a confiança foi desta forma e, no fim, ficámos grandes amigos”.

José Queirós ao largo da Antártida

José sentiu-se mais à vontade com o turno da noite para trabalhar. Com pano de fundo azul e branco, alguns icebergs à mistura – alguns de 20 metros – e várias ondulações que o obrigaram a colocar uma tampa de segurança na cama para não cair, o português trabalhava das 17 horas às 10 da manhã. “O resto era descansar, tomar banho e pronto, voltar a trabalhar no dia a seguir. As nossas refeições eram pequeno-almoço às três horas da manhã, almoço às 11 horas e jantar às 18 horas. Sempre com oito horas de diferença para ser rotativo”, recorda.

Nos mares da Antártida, a fauna e flora é muito rica. Uma das recordações de José foi quando avistou uma baleia azul: “Era tão grande que não cabia na fotografia” recorda entre risos.

Dias a balançar

Dois meses e meio passaram-se a navegar. José, antes de regressar a Portugal, foi convidado para umas férias na Nova Zelândia. Costuma-se dizer que em cada canto do mundo há um português e José encontrou vários durante a estadia. Entre eles, o seu orientador. Juntos foram ver a maior lula do mundo, acompanhada do maior polvo – descoberto pela equipa do Antartic Discovery. Deram entrevistas na televisão neozelandesa e em Portugal não foi excepção.

O polvo ficou no Museu Te Papa, em Wellington, e o que José trouxe foi um bico, ou seja, uma pequena parte do polvo, retirada a partir da dieta do mesmo: “Nós analisamos o polvo na Nova Zelândia e o polvo ficou no museu que tem a maior lula do mundo. O que eu trouxe nem foi a mandíbula, porque no museu tem de ficar tudo com o polvo”.


José Xavier (à esquerda) e José Queirós (à direita) a analisar o polvo

À semelhança de Ricardo, também José se apercebeu de algumas mudanças climáticas, na ótica dos seus companheiros: “Eles diziam-me ‘tu estás a ver isto, e é uma oportunidade espetacular, mas acredita que nós já vimos isto antes de chegarmos aqui, a este ponto’, ou seja, grandes icebergs já se viam antes do ponto onde eu estava a ver. A pergunta que se fazia era ‘E daqui a 5 anos? Como é que vai estar? Será que vai estar igual, será que vai diminuir?’ isso nós não sabemos, mas quem lá estava notou a diferença”, relata o português.

Entre episódios, dias bons, dias menos bons, será que estes cientistas gostavam de voltar? Ricardo afirma que gostava, mas não está nos planos futuros: “Neste momento sinto que está na altura de aproveitar, tentar ver o que consigo fazer a partir daqui. O trabalho na Antártida foi um ano muito cansativo, principalmente nos últimos meses, nós tivemos a mudar a base, toda uma serie de projetos em que trabalhar”, refere. Mas quem sabe se não volta: “A motivação é diferente porque se está a fazer história”.

Uma coisa é certa: os sonhos podem realizar-se, nem que seja na morada mais fria do planeta. Já dizia Pessoa: “O mar com fim será grego ou romano: o mar sem fim é português”.

[Reportagem original feita no âmbito da unidade curricular de Teoria da Reportagem, no Mestrado de Jornalismo da NOVA FCSH. Esta é a versão atualizada e reformulada]