Eu sou de uma geração que nasceu em liberdade, porque houve quem lutasse para que eu a tivesse. Hoje, sou obrigada a abdicar de parte dela, porque há um ditador invisível que me obriga. Mas felizmente, abdico dela. Não porque é bonito e porque VaiFicarTudoBem, mas porque há pessoas que dependem dessa minha falta de liberdade para ajudar quem precisa.

Estamos no primeiro mês de um novo ano, ano este que se esperava mais calmo, mais tranquilo em relação à pandemia que assolou o mundo inteiro e que encontrou em Portugal um refúgio. Os primeiros meses de confinamento, que começou em março de 2020, despoletaram ondas de crises, sejam elas de cariz psicológico, de desemprego, de mudança e, no limite mais triste, da morte.

Hoje, voltamos não à estaca zero, mas a um novo início de vida: o confinamento voltou a repetir-se (e vai continuar e continuar), apesar de agora termos as munições preparadas para carregar a arma que se chama adequação. Adequação à vida, às rotinas, ao teletrabalho, à distância. E não quero com isto dizer que é fácil, porque obviamente não o é, mas pode ser trabalhado com o foco apontado e pronto a disparar, e ter a convicção de que “isto” vai passar.

Mas é tão bonito falar em esperança e que VaiFicarTudoBem, quando a morte, ou o vislumbre dela, ainda não nos bateu à porta. E penso sinceramente que é isso que está a acontecer atualmente. Por outras palavras: quando estamos bem e não nos dói nada, abusamos do nosso corpo ou da nossa mente. Quando, de repente, temos o início de uma dor ciática ou uma inflamação na região lombar, o que fazemos imediatamente? Vamos a um fisioterapeuta. Quem não o faz, devia. E depois de receber os devidos tratamentos, tomar a medicação certa, começamos a pensar: “Não devia ter carregado aquele sofá sem me agachar primeiro” ou “ontem no trabalho tive de carregar com cinco grades de cerveja, devia ter dividido o peso” ou ainda “que sapatos ando eu a usar?”. Olhamos de uma forma mais atenta para aquilo que temos e que deveríamos valorizar mais. Com a pandemia, é exatamente a mesma coisa. Ainda não nos bateu à porta, por isso não lhe damos tanto valor. Há quem o faça sem ter o vírus, felizmente, mas são poucos os casos, parece-me.

Voltando à situação atual, é óbvio que todos nós nos sentimos presos – por não podermos sair com a frequência desejada, por não beber um copo num pub, ou simplesmente ter a rotina casa-trabalho-trabalho-casa como antes – mas a verdade é que somos afortunados por isso. Por dois motivos: o primeiro, porque parte da população tem um ambiente estável em casa, tem comida na mesa, o mesmo rendimento e uma saúde de aço; a segunda, porque está em casa enquanto os outros – sim, aqueles, os outros – como polícias, bombeiros, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de saúde, empregados dos supermercados, farmacêuticos, entre muitos outros – têm que todos os dias dar o corpo às balas a um inimigo que nem sequer se vê.

Felizmente, ainda não perdi nenhum familiar devido à Covid-19 ou a outra doença neste Estado de Emergência quase ininterrupto, ou tive familiares próximos contaminados. E sinto-me grata por isso, porque não consigo imaginar a dor de nem sequer poder fazer vigília pela pessoa e não ter a oportunidade de colocar uma flor sob o caixão.

Esta semana, tive que sair de casa. Vivo em Lisboa e tive que imperativamente ir fazer um exame que não podia adiar mais. Para variar, perdi o autocarro que me levava ao centro de exames e, para não perder mais tempo, fui a pé. Caminhei pela cidade com a máscara, e vi uma Lisboa crua e despida. E quando digo crua, era porque os acessórios já não estavam ali: os turistas, os animadores de rua, as pessoas apressadas para o trabalho, as paragens aninhadas de gente. Aquilo que vi foi quase a última camada da cebola. Os sem-abrigo, os velhotes que, muito juntos, se sentavam nos bancos de jardim. Sim, porque mais depressa morrem em casa do que na rua.

Ao andar, grupos de jovens (talvez dos 18 aos 40 anos) de ar duvidoso – e quando classifico assim, falo de pessoas que provavelmente vendem droga ou estão a mirar o próximo roubo. E no decorrer da minha caminhada, ainda consegui ver autocarros praticamente vazios, pais com os filhos pela mão de passo apressado, sinais verdes que não tinham ninguém para passar a passadeira.

Quando cheguei ao centro de exames, a realidade ainda bateu com mais força na cara. As funcionárias, a cada movimento, desinfetavam as mãos; os técnicos e médicos vestidos de plástico dos pés à cabeça. Pessoas idosas à espera de fazer exames porque assim tinha de ser. E com isto tudo pensei ‘que tempos serão estes’. A última vez que tive este pensamento tinha eu nove anos, estava na primária e a minha professora tinha-nos mostrado imagens de chineses a usar máscara por causa da poluição ambiental. E pensei que tempos seriam aqueles, e o quanto odiava que isso acontecesse comigo, no nosso Portugal.

No dia em que fui ao centro de exames, o país registava o recorde de mais de 300 casos de morte por Covid-19 num só dia. E isto esquecendo aqueles que morreram por outras causas. E com este cenário, que só conseguiremos avaliar quando tivermos a oportunidade de ressacar de tanta informação, sentimentos e revolta, é que iremos perceber a guerra por que passamos.

Eu sou de uma geração que nasceu em liberdade, porque houve quem lutasse para que eu a tivesse. Hoje, sou obrigada a abdicar de parte dela, porque há um ditador invisível que me obriga. Mas felizmente, abdico dela. Não porque é bonito e porque VaiFicarTudoBem, mas porque há pessoas que dependem dessa minha falta de liberdade para ajudar quem precisa.

Quando digo que há pessoas que só aprendem quando descobrem a iminência da morte ou da doença, é porque muitas delas não respeitam o uso da máscara, a distância de segurança, ou ainda o facto de terem que estar confinadas. Sim, é mais fácil e divertido ir para festas no Cais do Sodré, ou ir jantar a restaurantes de portas fechadas e ainda celebrar aniversários com os amigos. É lindo sim, e em 2019 seria mais do que normal. Agora, é ilegal. É arriscado.

O problema é que quando acaba a nossa liberdade, começa a do outro. E muitos insistem em negligenciar essa premissa. A liberdade do outro pode ser uma namorada ou namorado, a mão, o pai, a avó, o avô, a filha ou o filho. E, mais a limite, a dos enfermeiros e médicos que estão a acusar esgotamento psicológico, feridas em todo o corpo, mas principalmente na cara, desgaste, e ainda privação de estar com quem lhes lambe as feridas.

Falo também dos operadores de caixa, que têm que ganhar o rendimento, mas que para isso têm de fornecer os bens essenciais; falo dos polícias e guardas que estão na rua a alertar a população e que todos os dias vêm cenários como 37 ambulâncias em fila de espera no Hospital Santa Maria, em Lisboa; nos bombeiros; e por aí fora.

É difícil ficar em casa. Eu não sei o que é viver sem liberdade, mas hoje estou a aprender. E espero viver para contar aos meus filhos e aos meus netos. Dizer-lhes: “Sabes, custou muito, nem imaginam, mas consegui”. E vocês, conseguem? Conseguem caminhar por um terreno cheio de espinhos? Haverá sangue, claro. Mas todos nós sabemos que os caminhos mais difíceis nos levam a portas mais seguras.

Pensem mais nos outros. Pensem quem está na linha da frente. Não sejam egoístas. Não valem medidas mais restritas se em primeiro lugar não colocarmos, a nós próprios, limites. Se não tivermos consciência e noção. Fiquem em casa. Ajudem os outros, mesmo que essa ajuda pareça invisível e insignificante. No final, vão ver que não é.