Esta história começa com a vontade de conhecer novos mundos, obter conhecimento através de contos tradicionais e a palavra “não” estar excluída do vocabulário. Esta é a Ana Sofia Paiva: atriz e contadora de histórias, que acredita que nada acontece por acaso.

Das palavras faz ofício. Quem a conhece, sabe que o sorriso é fácil e as histórias são uma das suas magias, muitas delas começadas de olhos fechados, a sentir de dentro para fora. A Ana Sofia Paiva é tudo e nada; tudo, porque cabem-lhe nos pensamentos e na criatividade “todos os sonhos do mundo”, como escreve o poeta que mais adora; E nada, porque precisa de “desligar” de vez em quando, de amadurecer as suas histórias e ideias.

O meu coração é um albergue aberto toda noite
(…)
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo
(…)
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos

A definição da sua vida está no excerto do poema “Acordar”, de Álvaro de Campos, quase musicado por Chopin, o seu compositor preferido. Tudo começou no teatro, no outro lado da ponte, na Margem Sul. Na vida de Ana Sofia, tudo foi por acaso. Ou talvez não, porque acredita que não existem coincidências.

A sua chegada ao Instituto de Estudos e Literatura e Tradição (IELT) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) permitiu-lhe a oportunidade de trabalhar com Isabel Cardigos, outra investigadora da mesma unidade de investigação, no Arquivo do Conto, no Algarve. “Por acaso” é aqui que começa a sua jornada como contadora de histórias.

Entre Cabo Verde, Nova Iorque, Brasil e tantos outros países que ouviram as suas histórias, agora traz na bagageira o seu primeiro livro, com reflexões suas de um capítulo de vida que teve como palavra-chave a mudança. Já percorreu Portugal de Norte a Sul e em Lisboa assume o compromisso com a Associação Renovar a Mouraria, que a recebe na última quarta-feira de cada mês. A “Contaria” é a sua disciplina, ela que viaja, muitas vezes, sem sair do sítio.

A Ana Sofia Paiva foi conhecer a Ana Sofia Paiva, a contadora de histórias. O lugar para esta conversa é insólito, porém, especial: o Cemitério do Alto de S. João, em Lisboa. Neste lugar, o silêncio quase utópico de uma cidade ruidosa é permitido.

Ana Sofia Paiva. Créditos: Estelle Valente

Quem é que é Ana Sofia Paiva antes de ser atriz e contadora de histórias?

Eu tenho uma relação ainda muito presente com a minha infância, estou ainda muito enraizada nela, gosto de dizer que sou neta. Sou fruto de quatro avós muito presentes e de pais que me alimentaram de muita informação. Cresci com muitos livros, com muita música, com professores ótimos, num local que na altura estava a borbulhar, a Margem Sul, quando surgem as bibliotecas municipais. Tive uma série de projetos artísticos, um investimento muito grande na cultura… Bebi muito [desta cultura] na minha infância e na minha adolescência. E depois também tem que ver comigo, com as minhas escolhas, com aquilo que eu fui decidindo fazer.

Desde muito cedo que me comecei a envolver-me nos palcos, na comunicação com outras pessoas, no trabalho em grupo, no trabalho em comunidade. Sempre cresci aí e não me conheço de outra forma, e nunca me imaginei a fazer outra coisa que não fosse estar em contacto com as pessoas e a falar da vida.

Eu não decidi “agora vou-me só dedicar a isto”. Começou a acontecer e nunca mais parou

Porquê esta mudança de pano, para um segundo ato? Quando é que teve aquela epifania de ir contar histórias às pessoas?

Nunca tive essa epifania. O que aconteceu foi que tive um momento na minha vida em que eu decidi, quis, tive a vontade de voltar a estudar. Já tinha terminado o Conservatório de Teatro, que era muito prático e não tanto teórico e, portanto, já há muito tempo que eu não estudava. Estava a sentir-me a empobrecer, a fechar muito o meu universo. Tentei fazê-lo auto didaticamente, ou seja, ir estudando outras coisas mas não era o mesmo. E já estava a fazer teatro há muito tempo, a trabalhar muito diariamente em várias companhias, em vários projetos itinerantes, estava muito cansada desse trabalho mais físico. Queria um trabalho mais intelectual. Então andei à procura e descobri o IELT [Instituto de Estudos de Literatura e Tradição da NOVA FCSH] por acaso. Interessei-me porque na altura estava a criar um espetáculo, e também porque já estava nessa fase de querer mudar um bocadinho.

Sai da companhia em que estava a trabalhar e criei um espetáculo para poder sobreviver [e] que tinha alguns contos tradicionais, porque já estava a trabalhar em escolas e bibliotecas. Um espetáculo de teatro com contos de António Torrado e de outros e, por isso, já tinha um nicho pequenino de informação. E devido aos contos tradicionais e de estar à procura de montar esse espetáculo tropecei no IELT e fui lá. E foi aí que tudo começou. Descobri que existia um instituto dedicado à literatura tradicional. [Eu fui lá e] eles ofereceram-me livros sobre a área.

Quantos?

Um saco de 20 livros. Foi a minha primeira biblioteca dedicada à literatura tradicional. Ainda os tenho em casa como literatura de referência. Eram temas, para mim, muito esquisitos, não sabia que as pessoas trabalhavam aquelas coisas [risos]. Eu pensei: “Está uma pessoa dedicada a estudar sobre as tradições, isto não é só informação de museu, isto está vivo”. E isso era muito distante para mim. E depois aconteceu nesse ano, nesse momento, o IELT estar a abrir bolsas e eu concorri.

Eu costumo dizer que os contos também me deram habilitações literárias. Em vez de ir tirar um curso, voltei à minha [antiga] escola – que era uma coisa que eu não queria – e consegui o grau de licenciatura, que não tinha pensado fazer tão cedo. Mas fui fazer isso, e enquanto estava a fazer o relatório de licenciatura pude candidatar-me à bolsa. E ganhei!

Como?

Escrevi uma super carta de intenções, disse que era eu a pessoa indicada, mas não tinha a menor ideia do que estava a concorrer. Eu vi as bolsas que estavam abertas e não percebia nenhuma delas. Trabalhar no Arquivo do Conto pareceu-me espetacular – que foi o que acabou por acontecer – mas não sabia o que era.

Era um desbravar de um novo mundo…

Era. Eu tinha a intuição de que aquilo ia ser espetacular. Mas não fazia a ideia do que é que implicava, do que é que era, nunca tinha visto, nem conhecia absolutamente ninguém da área. Ganhei, e depois disseram-me “agora és bolseira e vais para o Arquivo do Conto que fica na Faculdade Humanas e Sociais do Algarve [risos] e portanto vais transcrever as recolhas que foram feitas desde os anos 90, e que estão ali paradas e precisam de ser transcritas para entrarem no arquivo”. E eu… “Isso é o quê?” [risos] Portanto, eu não tinha de ir lá muitas vezes porque recebia as cassetes, mas comecei a ir.

Comecei a ir para perceber o que é que era, para conhecer a minha orientadora, a professora Isabel Cardigos [investigadora no IELT], que passou a ser a minha grande mestre. Ela é uma pessoa que dedicou a vida inteira a isto, por isso era importante [ir]. As primeiras recolhas que comecei a transcrever foram as recolhas do António Fontinha, o primeiro contador de histórias [em Portugal], e comecei a descobrir todo um novo mundo.

Não gosta de estar parada, tem sempre algum projeto na manga. Viaja muito a contar histórias.

Sim, eu tenho uma criatividade muito rápida e constante. E isso às vezes é muito produtivo e outras é contraproducente, mas sou muito rápida, tenho muitas ideias por segundo e muita vontade de concretizar coisas. E acabo por correr atrás de mim, a minha cabeça vai e eu tento ir atrás dela. Tenho muita dificuldade em dizer que não às propostas, aos desafios! Não é porque “quero tanto viajar, quero tanto estar ali”, mas é porque tenho dificuldade em dizer que não, tenho sempre interesse, sou uma pessoa muito curiosa e para mim é impossível ficar em casa a pensar “devia ter ido, aquilo devia ter sido muito giro, queria saber o que é que era”! Parece que quero experimentar tudo, sempre fui assim como criança, muito curiosa e muito ativa, e por isso isto continua assim. Às vezes é preciso parar e perceber esse equilíbrio. Os contos também me deram isso, mais que o teatro.

Aquele livro é fruto de uma série de apontamentos que eu ia tirando ao longo do tempo em que estive no Algarve, no arquivo, com a Isabel Cardigos.
É muito um percurso poético meu desde essa altura, desde que eu me tornei contadora de histórias ou abri esse caminho na minha vida

Lançou o seu primeiro livro em outubro de 2018. Como aconteceu? Ganhou coragem e decidiu?

Não, também não [risos]. Sou uma cobarde nestas coisas! [risos] O que aconteceu foi que, há cerca de dois ou três anos, por causa do Facebook e dos blogues, eu decidi começar a publicar coisas que escrevia. Tinha um blogue e partilhava no Facebook. Eu sempre escrevi poesia desde nova, mas estava tudo fechado. E aconteceu que algumas pessoas iam vendo e iam seguindo e começaram a perceber que eu escrevia poesia. E estas duas pessoas, que criaram uma editora – a Poets and Dragons – fizeram-me este desafio, era uma coisa assim para ontem. E eu disse “como assim? não, isto não vai acontecer, ainda por cima o primeiro livro! Tenho tanta coisa escrita… começo por onde?”.

Pronto, e depois é aquela conversa de café ou de quando acabas um espetáculo em que tu pensas que aquilo vai morrer ali, eles esquecem, e vão para outra pessoa. Há tantas pessoas que querem publicar! Mas não. Não me largaram! Então eu comecei a ir ver as coisas que tinha escritas. Não escrevi de propósito – foi muito pouco tempo depois da proposta até publicar. O que aconteceu foi isso, mas acho que não é um livro de fácil leitura. Mas senti que era o primeiro. Aquele livro é fruto de uma série de apontamentos que eu ia tirando ao longo do tempo em que estive no Algarve, no arquivo, com a Isabel Cardigos. É muito um percurso poético meu desde essa altura, desde que eu me tornei contadora de histórias ou abri esse caminho na minha vida.

O título é muito curioso, chama-se “A Serpe”. Porquê este nome?

A serpente é muito presente nos contos maravilhosos, o tal dragão ou a bicha de sete cabeças, o grande obstáculo aparentemente intransponível que tem que ver com o sangue. Tudo isso são coisas que aprendi com o estudo do Mestrado e do Doutoramento da Isabel Cardigos, que incide muito sobre o sangue nos contos maravilhosos e o feminino, e o simbolismo do sangue. Essas leituras todas foram inspirando o meu imaginário e enriquecendo o meu vocabulário a esse nível. E portanto aquele poema, que é um poema dividido em três – a iniciação, depois um osso do meio, depois o rabo da serpente – é fruto das notas que eu ia tirando, ou seja, ia ouvindo aquelas coisas e lendo, e depois transformava isso em poesia à minha maneira.

Vivemos agora numa época em que interessa pouco a verdade, toda a gente fala e partilha e tem a sua própria verdade. E a gente já não sabe de onde vem a informação, a verdade não importa

Acha que as pessoas ainda precisam de se ligar por meio de histórias? Acha que as pessoas precisam de se ouvir umas às outras?

Penso que são movimentos cíclicos na Humanidade. Acho que sempre houve estes movimentos, em que a palavra, a transmissão da palavra oral, ganha poder. Há 30 anos não se falava de contadores de histórias, mas há 150 anos houve um grande movimento [de contadores de histórias]. Portanto, eu acho que nós surgimos, os poetas da realidade, porque recriamos essa transmissão, ela é criada por nós. E acho que surge em momentos de crise, para resignificar o que andamos aqui a fazer, resignificar a Humanidade. Portanto, creio que são as circunstâncias da sociedade que tornam importante aquilo que nós fazemos.

Vivemos agora numa época em que interessa pouco a verdade, toda a gente fala e partilha e tem a sua própria verdade. E a gente já não sabe de onde vem a informação, a verdade não importa. A comunicação está noutro lugar e torna-se essencial a presença destas pessoas, que dizem “não, eu venho de outro lugar e vou-te contar uma outra coisa, e vou-te dar a oportunidade de te enraizares”. Se não andamos aqui um bocado sem raíz, sem saber quem é quem, de onde vimos e para onde é que vamos. Acho que é isso, são movimentos cíclicos.

De tempos a tempos aparecem estas pessoas, como se fizéssemos parte da mesma família. Neste momento, sinto essa missão, tenho esse papel nesta sociedade em que estou. A Contaria [na Associação Renovar a Mouraria] tem esse papel, as sessões que proponho têm esse papel, por isso é que as pessoas se ligam tanto porque faz esse contraponto com a realidade em que estão a viver diariamente.

Uma resposta

  1. Não conhecia mas, como unhaense que também sou, congratulo-me com o despontar de valores que dão visibilidade à nossa terra. Parabéns e continue porque bem precisamos de pessoas que se impõem pela qualidade e criatividade das suas obras.